pelo Ensino Artístico da Música em Portugal

quinta-feira, 8 de março de 2007

MANIFESTO

prelúdio

O ensino artístico especializado da música em Portugal vive numa espécie de limbo. O aspecto mais evidente desse estado, que dura desde o enquadramento legal criado em 1983, é a indefinição sobre o estatuto dos seus agentes: alunos, professores e instituições. Ao longo de mais de 20 anos, o ensino artístico especializado da música foi sofrendo modificações que na realidade nunca foram mais do que soluções para situações pontuais inadiáveis. Sobrevivendo de desenrascanço em desenrascanço, o ensino artístico especializado da música nunca foi alvo de uma reflexão que procurasse responder a algumas questões básicas e que deveriam condicionar todas as decisões posteriores:
1. Precisamos de um ensino artístico especializado da música?
2. Queremos um ensino artístico especializado da música de qualidade?
Assumindo que a resposta às duas perguntas é "sim", o ensino artístico especializado da música enfrenta hoje o seu desafio mais crítico. Mais do que hipotecar o futuro deste tipo de ensino, as reformas que se perspectivam assinarão a sua sentença de morte.

Dissertar sobre as razões de uma resposta positiva à primeira questão é provavelmente desnecessário e inútil. É por demais óbvio que a criação artística é parte integrante e inalienável da nossa sociedade, contribuindo de forma insubstituível para o bem estar do indivíduo. Sendo a música uma parte imensa dos processos de criação de hoje (nunca em todos os tempos houve uma época com uma presença musical tão grande em todas as actividades sociais) e visto que os músicos não são formados por geração espontânea mas pelo contrário passam por um processo formativo intenso e demorado, a necessidade de um ensino artístico especializado da música é por demais óbvia.

Já em relação à segunda questão, uma reflexão profunda é urgente. A resposta óbvia é “sim”, mas atentando à evolução do ensino artístico especializado da música em Portugal parece que o caminho trilhado por decisão políticas e administrativas não foi nessa direcção. Apesar de haver uma clara melhoria do nível dos formados pelos estabelecimentos de ensino artístico especializado da música portugueses, sobretudo nalgumas áreas específicas como as cordas, esse progresso parece estar mais relacionado o com crescente nível dos formadores do que com melhores programas, melhores instalações ou melhores condições de estudo. Na realidade, atentando nos estabelecimentos públicos do ensino artístico especializado da música, nomeadamente no secundário, é fácil constatar que o único crescimento visível é no número de alunos e que na maior parte dos casos esse crescimento causou sérios problemas de gestão de espaços levando mesmo a rupturas. Os professores não têm melhores condições de trabalho, os alunos têm
incomparavelmente mais limitado o acesso a salas de estudo, as bibliotecas (?!) estão na mesma, as instalações são as mesmas com a agravante do desgaste dos anos que lhes passaram por cima.
A obsessão pelo “politicamente correcto” levou a que paulatinamente uma mentalidade laxista e condescendente tomasse lugar, em detrimento da exigência e da ambição que necessariamente são apanágios de qualquer actividade artística. A pouco e pouco criou-se a mentalidade que é mais importante defender e motivar o aluno displicente do que premiar o aluno trabalhador e empenhado. A pouco e pouco a aula de música foi-se tornando no único ponto de contacto do aluno com o estudo da música e sem que fosse seguida e sustentada pelo incontornável trabalho individual regular que todos os alunos têm de realizar para consolidar os conhecimentos adquiridos. A pouco e pouco foram transferidas para o professor e para as escolas responsabilidades que deveriam pertencer aos alunos e encarregados de educação.
A pedra de toque desta mentalidade "ocupacionista" surgiu com a recente invenção dos "cursos preparatórios" destinados a alunos de idades inferiores a 10 anos. Apesar de não haver dados que provem a vantagem da iniciação musical em tão tenras idades (na perspectiva dos objectivos do
ensino artístico especializado da música), apesar dos professores e funcionários dos conservatórios não estarem formados nem preparados para crianças dessas idades e apesar das instalações dos estabelecimentos apresentarem um sem número de riscos para essas crianças, a grande maioria dos conservatórios avançou com projectos nessa área que apenas contribuem para saturar ainda mais os espaços.

Para além da responsabilidade óbvia do poder político que pode tomar e insiste em tomar decisões à margem do parecer daqueles que são os especialistas e que conhecem profundamente a realidade do ensino artístico especializado da música,
os seus agentes não se podem descartar da sua responsabilidade no estado da situação actual. Os músicos têm de ser capazes de explicar claramente aquilo que são as necessidades e implicações da sua profissão; os músicos têm de ser capazes de recusar medidas que colocam em risco a qualidade e dignidade de uma formação especializada; os músicos têm se assumir como os únicos capazes de compreender todas as implicações e inerências do ensino artístico especializado da música e de planear objectivos, métodos e estratégias que permitam a sua existência digna e válida.
Almejar, projectar e defender um ensino artístico especializado da música de qualidade é tão fácil ou tão difícil como deixar que este caminhe para uma morte agonizante, como sucede neste momento.

O presente manifesto não é assinado. Não porque os promotores da iniciativa receiem qualquer tipo de retaliação em relação à posição que assumem mas porque este texto pretende-se impessoal. Pretende-se que este manifesto seja construído por todos os que sintam que possam dar um contributo para inverter a marcha dos acontecimentos e que possa reflectir a ideia que uma classe profissional tem da sua actividade e das condições mínimas e indispensáveis para que uma formação académica na sua área possa ter lugar.

Este texto é aberto e encontra-se em construção. Qualquer pessoa pode participar na sua elaboração através do email manifesto.ensino.artistico@gmail.com




MANIFESTO
pelo ensino artístico especializado da música



da condição de músico

1. Ser músico implica um processo de aprendizagem contínuo, interminável e individual.
2. Um músico nunca abdica de cuidar a sua formação; no momento em que o faz deixa de ser músico.
3. A formação de um músico implica um investimento, pessoal e material, invulgar quando comparado com outras profissões.
4. Um músico nunca abdica de se expressar artisticamente; no momento em que o faz deixa de ser músico.
5. O exercício de uma actividade artística requer uma disponibilidade total e incondicional.
6. Arte não é sinónimo de entretenimento.



do ensino artístico especializado da música

1. Ensinar não é ocupar.
2. Formar não é entreter.
3. Há áreas do saber que implicam a aprendizagem e o exercício de rotinas intensivas que consolidam os recursos adquiridos e sem os quais uma formação mais avançada não pode ser construída e determinados objectivos não podem ser alcançados.
4. O processo de aprendizagem musical requer por parte do formando uma rotina quotidiana, diligente, empenhada e que ultrapassa largamente o âmbito das actividades académicas.
5. O ensino artístico especializado da música deve seleccionar acima de tudo os alunos que se demonstram disponíveis para enfrentar o processo acima descrito.
6. A aula individual é uma parte fundamental, incontornável e estruturante da aprendizagem musical.
7. A aprendizagem não pode por vezes ser lúdica.
8. Não se ensina a ser músico, ajuda-se a aprender.
9. Apenas um músico pode ser um professor de música.
10. Um bom músico pode não ser um bom professor de música.
11. Um mau músico nunca pode ser um bom professor de música.
12. Apenas um indivíduo que lida diariamente com as dificuldades e características do processo de aprendizagem musical pode ajudar outros no seu processo de aprendizagem musical.
13. Apenas um indivíduo que exerce actividades artísticas pode formar outros que pretendam exercer actividades artísticas.
14. Um estabelecimento de ensino artístico especializado da música deve ser um lugar onde indivíduos possam encontrar as ferramentas necessárias para construírem o seu percurso individual.
15. A missão do estabelecimento de ensino artístico especializado da música de nível secundário deve ser a de formar alunos capazes de prosseguir os seus estudos a nível superior, independentemente da decisão que possam tomar posteriormente.
16. A missão do estabelecimento de ensino artístico especializado da música de nível superior deve ser a de formar alunos capazes exercer uma actividade artística musical como profissão.
17. A condição de professor do ensino artístico especializado da música não pode nunca implicar o abdicar do exercício de uma actividade artística.
18. Não há regras nem percursos pré-definidos para a formação de um músico.
19. Parte considerável da aprendizagem de um instrumento (ou canto) implica o desenvolvimento e controlo de processos psico-motores; estes processos são correntemente designados por “técnica”.
20. A aprendizagem e assimilação de recursos técnicos implica o exercício individual regular.
21. Na aprendizagem e assimilação de recursos técnicos, a orientação do especialista garante que as capacidades do formando sejam optimizadas e as suas dificuldades ultrapassadas.
22. Na aprendizagem e assimilação de recursos técnicos, a orientação do especialista é fundamental para evitar que estes seja construídos sobre bases frágeis ou não consolidadas.
23. A orientação do especialista é fundamental em todas as fases do processo de aprendizagem musical, desde o primeiro contacto até à inserção na vida profissional.
24. Apenas o especialista possui a capacidade de diagnóstico e as ferramentas metodológicas que permitem ao formando definir objectivos, traçar percursos e corrigir problemas.
25. Construir um percurso musical assente em bases frágeis resulta inevitavelmente em momentos de bloqueio que necessitam de processos morosos e complexos para serem resolvidos.

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